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E assim será Granada em 2019:

(Desculpe se você está recebendo este e-mail pela segunda vez, estamos promovendo ajustes)

Feliz 2019 para todas e todos vocês!

Este ano, Granada vai mudar um pouco de formato. Ao invés do PDF, vamos ter algo mais facinho de pegar, mandar um por e-mail e compartilhar.

A ideia é manter a nossa alma e mudar o meio. Seremos uma espécie de newsletter. Afinal, assim como a modernidade e o amor, o conteúdo também é líquido e se adapta a mil e uma formas.

Nossa primeira edição neste novo formato sai em março, depois do Carnaval. Faremos, pela primeira vez, uma versão temática.

Aceito, como sempre, sugestões para que tudo fique o mais legal possível. Me escrevam.

Camilla F.

Meu primeiro coturno

por Bia Bonduki

Talvez você não acredite no que eu vou te contar, e eu te dou razão, mas, quando eu quis um tênis preto de presente, aos 14 anos, meu pedido teve que passar pela avaliação de um tribunal familiar. Os argumentos eram dos mais infundados:

— Tênis preto? Por que não pega um mais bonitinho?

— Nossa, compra logo um Kichute!

— Eu não vou pagar pra você parecer um moleque.

Após muita insistência, ganhei a batalha e fui contente até a galeria comercial da minha cidade, para comprar meu Reebok Classic cor da noite. Eu só queria um tênis preto para combinar com minha calça bailarina preta e minha camiseta da Planet Hollywood preta, entre outras opções trevosas. Nosso amor durou até a nova moda, que acredito ter sido o revival do All Star de cano alto.

Eu já sabia que, pra sair do padrão silenciosamente estipulado no seio da família, eu teria que me virar. Pedindo, eu podia até conseguir algumas coisas, mas às custas de desaforo e contrariedade. Por isso, mantive a prioridade de seguir meu gosto pessoal e não esperar que ele fosse permitido por meus superiores, fossem eles quem fossem. Isso se estendeu até o dia em que tomei conhecimento da existência dos coturnos Dr. Martens.

Eu não me lembro exatamente quando foi, só me lembro que queria. Era caro além das minhas posses, mas aquela costura amarela ao redor da sola parecia a solução para muitas das minhas questões. Alguns anos mais tarde, comecei a namorar um garoto de banda. Ele usava esse coturno e camiseta Hering. Eu, no segundo ano da faculdade, usava calça justa e sandália plataforma.

Lembro dele me falar:

— Você é muito patricinha, você devia se vestir como minhas amigas da banda Vou Morrer de TPM*.

Eu só pensava que, para isso, talvez eu tivesse que 1) adular meus pais com um propósito escuso, 2) arrumar um segundo estágio e abrir mão do horário de sono. A opção “mandar esse rapaz à merda” nunca chegou a ser avaliada, do alto dos meus 20 anos. Eventualmente, o namoro acabou e, em seguida, a Bel apareceu.

Colega de classe, de família estrangeira e pezinho 35, ela veio me contar que a mãe havia trazido um par de coturnos Doc Martens de presente, e que eles eram muito pequenos para ela. Dentre as amigas, só havia uma com o pé menor que o dela, e essa pessoa era eu. Negociamos um preço parcelado, que reconheço ter custado a pagar — mas paguei! — e fizemos a troca na lanchonete da faculdade.

Num sábado de inverno e muito sol, calcei o par de sapatos que me transformava em uma pessoa especial, e parti rumo ao metrô Marechal Deodoro, para encontrar meu grupo de trabalho de classe. Lembro de ter montado o meu visual na noite anterior, para que tudo valorizasse meus pés. Só não imaginei que botas tamanho 33 fossem tão difíceis de amaciar.

O caminho foi ficando cada vez mais custoso de percorrer, meus dedinhos esmagados na lateral, o peito do pé marcado pelo couro que não cedia. Meu orgulho, por outro lado, seguia tal qual busto de praça. Passei o dia sofrendo as dores do novo traje e do recente coração partido — não fazia sentido eu finalmente ter os sapatos que me fariam ser mais aceita se o objeto da minha afeição não estava mais por perto.

Ainda sim, eu me sentia muito foda.

Fiz esse texto porque, outro dia, ouvia a comediante Karen Kilgariff falar da sensação que toda jovem tem ao calçar seu primeiro par de Dr. Martens, de se sentir mais forte ao escolher algo tão… poderoso? Convenhamos: não é bonito nem confortável. É datado — meu par virou peça de decoração no meu quarto. Porém foi com eles que enfrentei essa e outras decepções amorosas, mergulhei por novas experiências, transitei por diferentes paragens e lembrei, sempre, de driblar a vida com um chute nas canelas.

*nome claramente fictício

Campeonato Brasileiro 1995

por Seane Melo

Penso que gostaria do Rio se fosse flamenguista, amaria os bares, os gritos e os fogos. Pegaria ônibus rubro-negros pro Maracanã, empolgada, te pediria pra me chamar Tereza. Sou botafoguense, no entanto, e não existe terra de botafoguense, nem aqui, muito menos no Maranhão. É uma utopia, ucronia talvez. É meu pai de quatro subindo a escada do terceiro andar, com um sorriso frouxo, os olhos desfocados e uma voz aguda que mal consegue formar as palavras 1907 ou 1910. É minha mãe vermelha, de vergonha e raiva. Não sei se ele brinca para me fazer rir, se vai voltar ao normal quando alcançar o último degrau, não sei se minha mãe segura o impulso de chutá-lo. A felicidade não é simples em 1995. É um tempo, um lugar, em que nada faz sentido. Pra mim, ainda não faz.

Perdas & ganhos

por Gaía Passarelli

Recentemente perdi três pessoas. Não perdi pra morte, menos mal. Perdi pra vida mesmo, porque essas coisas acontecem. E porque acontecem? Porque a gente precisa aprender alguma coisa.

Primeiro perdi um grande amigo. Foi uma situação desagradável, envolvendo fofocas e diz-que- diz, num roteiro digno do recreio da Quinta B. Ele discorda. E tanto discorda que acabamos nos termos “nunca mais fale comigo".

Depois perdi uma amiga. Ou melhor, discretamente a deixei ir da minha vida. É por causa de um segredo do passado que reapareceu, uma coisa meio de novela, uma coisa que ela fez com a qual eu simplesmente não quero lidar, não posso perdoar, não sei como deixar passar.

Perdi um crush também. Uma paixãozinha, um boy, uma razão do afeto que, na inha cabeça, oferecia mil possibilidades. Crush é menos importante do que amizades duradouras, verdade, mas nem por isso dói pouco. Como no caso do amigo, discordamos. E como no caso da amiga, decidi deixar ir sem falar nada, porque sei que algumas conversas é melhor nem ter. Segue o bloco, paciência.

Mas existe uma lição de humildade nessas três perdas. As pessoas, você inclusive, são o que são. Achar que só serão diferentes com você, pra você, de acordo com o seu desejo — isso não é inocência, é arrogância. Inocência é não enxergar. Arrogância é enxergar e não ver, saber e ir em frente mesmo assim, se achar imune, maior, inabalável.

Quantas relações infelizes são dão por essa nossa falta de olhar frio? O cara é um serial cheater, mas como é um bom amigo a gente passa a mão na cabeça e tudo bem. A mina fala mal de todas as amigas, não de você, claro, porque você é diferente, você é mais legal, ela nunca faria isso com você. O boy é incapaz de manter a palavra, só te usa pra inflar o próprio ego sempre desaparecendo em seguida, mas cada vez que reaparece você acha que agora ele viu a luz e vamos andar de mãos dadas na rua e tomar café-da-manhã juntinhos.

Não, amor. Se é sempre assim, por que com você, porque agora seria diferente? Se a pessoa trata assim todo mundo, porque não você? O que tem de único e especial que vai fazê-lo enxergar o pontinho brilhante da luz do amor verdadeiro pairando sobre a sua cabeça? Não é assim que funciona, e quanto mais cedo você entender que as pessoas são o que são e mantê-las na sua vida é sua escolha, melhor. Você pode ser amiga do cara que abusa das namoradas, sim. Você pode ser amiga da mina que pegou seu namorado, sim. Você pode insistir no crush errado, sim. Sua vida, sua decisão.

Mas quando se trata das relações que queremos ter nas nossas nossas vidas, quanto menos idealização, melhor. Então jogue luz nas coisas e veja-as como são. Apague aquele filtro de luz rosa- dourada que a gente insiste em deixar aceso e quando o seu sexto sentido falar, aponte aquela luz branca, fria, aquela luz cirúrgica e factual. Aquela que deixa as coisas feias, que mostra cada ruga, mancha e sujeira.

Porque a verdade é importante, porra.

o desperdício será cobrado à parte

ana guadalupe

duas abobrinhas
um pacote de pão de forma
a imbecilidade do amor jovem

a praia redescoberta
a seleção de música
seus dentes negligenciados mas ainda fortes

os estudos
três bananas nanicas
um tubo de pomada de micose

colagens de revista
o prazer pela escrita
amizades distantes

ainda guardo em alguma gaveta
tudo o que não levei adiante

Folha Seca

por Vanessa Del Negri

Declaro para os devidos fins
que acima de tudo e de todos
e com a maior certeza do mundo
que desisto.

Desisto
assim com a mesma leveza
com que o vento desgruda
a folha seca no inverno,
que toca o lago, tranquila
criando ondas na noite.

Desisto.

E como tudo no mundo, o faço
da mesma forma que larguei o tênis
jogado no canto do quarto,
parei com o regime forçado
e tentativas improdutivas de produzir
cada vez mais e mais e mais e mais.

Desisto, como deixei meu amor morrer
sobre as folhas roxas de um ipê,
como a receita do doce de maracujá
que deu errado.

Desisto
e se fosse possível medir esse grito
pediria pra deuses mais universos,
enquanto jogo no chão minhas armas
junto com os escudos comprados
em uma loja de velharias qualquer.

Se ainda me fosse possível sentir,
ou fingir um sorriso de outrora
- aquele, de criança que encontra
a mãe perdida na multidão de uma magazine,
ou que ganha uma besteira qualquer
quando o pai volta do trabalho.

Se ainda me fosse permitido algum vício
qualquer um desses que todos têm:
álcool, drogas, sexo fácil
violência gratuita, religião
novela, poker, café.
Nem isso.

Minha sentença corre em cada veia
enquanto fito meu algoz no espelho.

Se ainda me entregasse às ilusões
(só mais uma vez, só)
ou pudesse confiar além de crer.

Só mais uma frustração,
só mais uma frustração
e mais uma frustração,
que nem pra morrer eu dou conta.
Desisto.

Monstrinho

por Luci Afonso

Nossa rua tem um retardado que vive numa cadeira de rodas. O nome dele é Geraldo, mas longe dos adultos nós o chamamos de Monstrinho. Fui eu que inventei o apelido, porque ele se parece muito com um monstro que tem no livro da escola.

Geraldo é filho do Zedelino, dono do boteco na esquina com a avenida Getúlio Vargas. O lugar vive cheio, ora de pinguços jogando truco, ora de crianças encardidas comprando balinhas. Todo mundo diz que o Zedelino tem muito dinheiro guardado, mas ninguém tem certeza. Ele só usa roupas surradas e dirige uma Kombi caindo aos pedaços para transportar mercadorias. Eles moram nuns cômodos fedidos no segundo andar do boteco.

Monstrinho passa o dia na janela, olhando o movimento. Só sai para ir ao médico na Santa Casa. Dizem que ele vai viver pouco, por causa do retardamento. Também, pra que viver muito desse jeito? Melhor morrer logo. Igual à mãe dele, que morreu no parto.

Ele nos observa com atenção enquanto jogamos bola à tarde. Sou doido por futebol. Os meninos me chamam de perna de pau, mas sou muito bom no gol. Monstrinho torce por mim. Quando agarro uma bola, ele se mexe na cadeira e sacode os braços deformados. É muito engraçado.

No intervalo da pelada, entramos correndo no boteco atrás das balas que o Zedelino nos dá para brincarmos com o filho. De tão velhas, estão grudadas no papel, mas chupamos assim mesmo. Subimos as escadas escuras e fingimos rir com o retardado, quando na verdade estamos é rindo dele. Quando nos vê, ele balança os braços desengonçados, solta grunhidos e expele a baba viscosa. É nojento. Ficamos poucos minutos por causa do fedor de mofo e urina. Na saída, digo ao seu ouvido: tchau, Monstrinho!, o que o faz se agitar ainda mais, dando a impressão de alegria.

Eu e Monstrinho fazemos aniversário quase juntos: ele no dia 9, eu no dia 10. Este ano o Zedelino convidou todas as crianças da rua para a festa do filho. Vestiu-o de camisa nova, sentou-o perto da janela e desceu para esperar os convidados. Só apareceram os bêbados de costume. Ele os reuniu, subiram as escadas e cantaram parabéns. Assistimos a tudo escondidos na varanda de casa. Quase morremos de rir.

Ainda não contei que meu pai tem um comércio grande no Mercado Municipal, descendo a Igreja Matriz. Dá tanto lucro que ele precisa de três empregados para atender os clientes. Nossa casa é a mais bonita da rua. Tem dois andares, varanda em cima. Meu quarto é enorme, cheio de brinquedos.

Na manhã do meu aniversário, a campainha tocou logo cedo. Era o Zedelino, com uma bola embrulhada num papel todo amassado. Ele me deu os parabéns, me entregou o presente e ficou esperando. Entendi logo: ele queria que eu convidasse o Monstrinho para minha festa, mas fiquei calado até que ele desistiu e foi embora. Convidar o retardado para quê? Ele nem deve saber o que é uma festa.

Depois dos parabéns, meu pai me abraçou com força e se trancou na biblioteca. Estávamos estourando balões na varanda quando ouvimos o tiro. Os homens arrombaram a porta e correram para o hospital, mas ele já estava morto. Ouvi cochichos sobre dívidas de jogo, falência, penhora e outras palavras complicadas. Minha mãe disse que precisaríamos nos mudar.

Quando chegamos do enterro, saí andando sem rumo. Era quase noite, a rua deserta. Sentia ódio de todo mundo. Avistei o retardado na luz fraca da janela. Entrei no boteco. O Zedelino não estava no balcão; os fregueses tomavam a dose diária de pinga. Subi as escadas sem ruído. Monstrinho cochilava e despertou quando me viu. Eu disse oi, Monstrinho, e dei-lhe um beliscão que o fez ganir de dor. Continuei beliscando os braços atrofiados, joguei-o no chão e chutei sua cara até sair sangue. Ele urrava como um animal ferido. Atraído pelo barulho, o pai surgiu na escada, agarrou meu braço até quase quebrar e me mandou embora. Não pude ver seus olhos no escuro.

Fiquei no quarto vários dias, com medo da polícia, mas o Zedelino não contou a ninguém o que havia acontecido. Uma noite, a campainha tocou. Era ele. Conversou um tempão com a minha mãe e saiu. Ela subiu a escada, sem fôlego, para me dar a notícia: o Zedelino resgataria todas as nossas dívidas, e nós lhe pagaríamos a juro baixo e a longo prazo. Podíamos permanecer na casa. Ele só fez um pedido, que ela atendeu prontamente: dali em diante, eu brincaria toda tarde com o filho dele, em vez de jogar bola com os outros meninos.

Antes de atravessar a rua, vejo o Monstrinho me esperando na janela. Com repugnância, subo até o quarto espremido e fétido. Agora tem uma empregadinha que nunca nos deixa sozinhos. Ele me olha em silêncio, o corpo disforme jogado na cadeira de rodas, a cara cheia de hematomas. Assistimos ao futebol dos meus amigos a tarde inteira. O Zedelino só me deixa ir quando está escurecendo. Tudo culpa do retardado. No primeiro descuido da empregadinha, vou empurrar a cadeira escada abaixo, para que ele quebre todos os ossos e morra. Só assim poderei jogar bola de novo.

Periastro

por Setúbal

Te ver depois de tanto tempo devia ser proibido pela Lei Natural das Coisas, aquela entidade que prega que os filhos não deveriam morrer antes dos pais ou que mulheres devem engravidar até os trinta, S., era impossível esconder o MMA que virou meu estômago quando teu rabo de olho encontrou o meu rabo de olho, S., o desejo frustrado que a gente nem admite, nem pode, irrompeu, bolha de lava vulcânica, vinte e três segundos de expectativa de estoura não estoura, crescendo cada vez mais, mais, mais e mais até explodir, floco de erupção corroendo suave a certeza de que tudo que existia entre nós havia definhado seis anos antes.

Sabe aqueles locais que a gente frequenta com a possibilidade calculada de vislumbrar o passado, o perigo de rever o sorriso que se conhece tão bem sempre à espreita, tropeçar e ser amparada não pela mão gentil de um desconhecido, mas risco de emplacar uma cena de cinema, encontrar a mão que já percorreu seu corpo com sede e bebeu você inteira, sem gota no fundo da lata, Coca-Cola consumida às pressas na manhã de ressaca?

Pois é, foi assim, com o crime em mente que aceitei o convite para encontrar a turma na praça do bairro, centro nervoso do fim de semana, fazia verão inclemente a Deus e a qualquer santo, a cidade fervilhava ali, logo anunciariam a escola campeã do Carnaval de rua do ano, e topar com você, S., fazia parte da fantasia alá-lá-Ô-ô-ô-Ô-ô-ô-Ô que eu havia costurado ao longo do trajeto ônibus entre São Paulo Curitiba, os últimos arremates executados nos três dias percorrendo locais comuns à nossa história: o botequinho em que empanturrávamos a fome com caipirinha, pastel e confidências, o café onde o projeto comum de salvar o mundo por meio da arte era elaborado a quatro mãos e as ruas e mais ruas onde meu amor por ti havia crescido sem limites, ignorando sarjeta, pedras e bitucas de cigarro, erva-daninha invadindo qualquer vão de pedra.

Já era a quarta rodada de uma cerveja com temperatura igual ao do Saara comprada de um ambulante e a conversa brincava de bola de cristal de vidente charlatã, não, a escola Y não seria a campeã, sim, a escola X seria desclassificada, não, fulana não tinha peito nem bunda pra ser madrinha de bateria, sim, ainda faltavam uns 200 anos para as calotas polares finalmente derreterem, não, o futuro da indústria cinematográfica não seria negro, apenas cinza-claro, não, não estou a fim de conhecer seu apartamento novo e abrir uma champanhe esta noite, sim, é exatamente isso que você ouviu.

Quando eu dava o quinto despiste na mão boba que conheci através dos meus amigos, a cerveja descendo preguiçosa pela situação bêbada de irrealidade, meu olho pescou tua presença serpenteando entre foliões eufóricos e eu só ouvia “Mocidade/ Agora eu sou feliz/ Mocidade/ Você fez por mim/ Agora é por você”, Mocidade bicampeã, eu não tinha acompanhado o resultado, mas tua camiseta vermelha era como um holofote gritando “olha pra mim”, foi impossível fingir cegueira, focar a atenção no idiota que me cercava a noite inteira, procurar um fiapo de cutícula imaginário nas unhas ou qualquer outra das numerosas possibilidades que nos impedem de enxergar aquilo que a razão já havia enterrado com pompa e circunstância, mas que a emoção teimava em ressuscitar com reza brava.

Também impossível não perceber a presença da morena com você, fazer as indevidas comparações, mais baixa que eu, cabelo menos curto, sem bunda e com peito, o que ele viu nela, o que ela viu nele, viu o que eu vi, mais do que eu vi ou nem viu, vontade de trocar figurinha, ele também fala em correr o mundo com você, já curou a crença de acreditar que pepino e chocolate combinam, continua dormindo de conchinha a noite inteira agarrado como se o mundo fosse acabar sem dar tempo dos corpos se despedirem, descobrir se alguma mania mudou, se ainda guarda o chinelo debaixo da cama, se continua sem deixar louça na pia e queria saber se os sonhos e projetos em comum eram exclusividade de vocês, ou simplesmente foram transmitidos, via contágio, ou forma hereditária, à paixão da ocasião.

Então nesses vinte e três segundos em que o crime de rever você se materializa, S., em que cada movimento teu recuperava alguma lembrança da época das cavernas, sim, milhares de anos separavam nosso fim deste momento-agora, eu percebia tarde, demasiadamente atrasada, o quanto havia sido enganada, a paixão por ti sendo preservada à minha revelia, arte rupestre protegida sem pistas por esta ciência tosca que é o amor, e o que parecia feito da brevidade do confete pingado no chão, o que eu sentia por ti, S., havia se metamorfoseado em cometa, Halley, sim, novamente riscando o céu, imergindo, emergindo, órbita intermediária, de tempos em tempos, seis em seis anos, dez em dez, fosse lá o tempo que eu levaria para te rever, o fato é que havia impregnado ad eternum minha existência.

Remelas

por Camilla Feltrin

Todos os dias quando acordo, tiro as remelas dos olhos, escovo os dentes e jogo 50 e-mails desinteressantes na caixa de spam.

Todos os dias quando vou almoçar, lembro que já achei um fio de cabelo no meio da comida de cada um dos restaurantes próximos do trabalho.

Todas as tardes quando volto para casa, penso quão nojento são os corrimões do metrô, as minhas próprias unhas, a sola do meu sapato e o chão de casa.

Todas as noites, cogito passar um faca de fora a fora no meu pescoço.

Todas as noites, antes de dormir, vejo stories dos meus amigos e rezo um pouquinho.

Todas as madrugadas, acordo de sede e peço para os fantasmas se retirarem.

E tudo se repete sem sentido algum.

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granada7

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